Novo álbum de Erasmo Carlos traz releituras para sucessos de outros artistas da Jovem Guarda

“O Futuro Pertence à Jovem Guarda porque a velha está ultrapassada.” A famosa frase de Vladimir Lenin (1870 – 1924) serviu de inspiração ao publicitário Carlito Maia quando, em 1965, Paulo Machado de Carvalho lhe encomendou um novo programa para sua emissora. O dono da TV Record queria uma atração que enfrentasse diretamente o “Festival da Juventude”, da Excelsior, pioneiro em abrir espaço a um consumidor até então pouco valorizado pela televisão: o público jovem. A imagem contida em “jovem guarda” fazia todo o sentido a Carlito, já que a intenção era justamente se descolar dos outros programas da casa, destinados ao espectador adulto, mais velho.

Quando a Record foi proibida de exibir os jogos de futebol aos domingos, abriu-se a brecha na grade da emissora para a estreia do programa. O primeiro “Jovem Guarda” foi ao ar nesse horário tão nobre a partir de 22 de agosto de 1965. E mudou para sempre a cabeça daquela geração.

Unidos por uma química inexplicável, Erasmo Carlos, Roberto Carlos e Wanderléa foram os cicerones das dezenas de novos artistas que passaram pelo programa até sua extinção, no final de 1968.

A partir da interação com aquele grupo, a juventude brasileira se transformou. Ao mesmo tempo em que se via representada na televisão, ela tinha sua personalidade moldada pelo que via e ouvia ali: na maneira de se comportar, de falar, de se vestir. Mas nenhuma transformação seria tão potente se, à frente de tudo, não estivesse a música, com todo o seu poder de sedução. Uma música escrita por e para aquela geração. Que, embora fosse muito variada em termos estéticos, foi compreendida como se pertencesse a um único gênero, batizado com o mesmo nome do programa: Jovem Guarda.

Em um salto temporal de quase seis décadas, Erasmo Carlos recorre novamente à frase pescada por Carlito Maia para nomear seu novo trabalho. O Futuro Pertence à… Jovem Guarda já está disponível, nas principais plataformas de música, desde esta sexta-feira (4), pela gravadora Som Livre.

O álbum traz versões do Tremendão para oito clássicos daquele período. São hits lançados originalmente por outros artistas ligados à Jovem Guarda que seguiam inéditos na voz de Erasmo até agora. O álbum tem produção musical de Pupillo e direção artística de Marcus Preto. A mesma dupla já havia trabalhado com Erasmo Carlos em seu trabalho autoral mais recente, “…Amor É Isso” (2018).

Os bastidores de criação do álbum

O diretor Marcus Preto explica como surgiu a ideia da concepção do álbum O Futuro Pertence à… Jovem Guarda: “Quando recebi o chamado de Erasmo para trabalharmos no novo álbum, ele já havia listado dezenas de canções que poderiam ser revisitadas. Recolheu esse material a partir de um dos sempre valiosos bate-bolas que tem com o filho Leo Esteves, figura fundamental na execução das ideias de Erasmo. Leo assina a concepção e a coordenação de produção deste projeto. Com a lista dos dois em mãos, fui atrás de outras tantas músicas em meus LPs para aumentar o caldo, deixando ainda mais complicada nossa vida nos dias seguintes, já que teríamos de chegar a um total de oito faixas. Erasmo colocou um pré-requisito: cada escolhida precisaria ter sido cantada naquelas jovens tardes de domingo, ou seja, nada  posterior depois do “Jovem Guarda” estaria dentro”, detalhou o diretor artístico do disco, Marcus Preto.

“Nossa ideia era fugir de qualquer clima saudosista, já que as gravações originais, além de muito bonitas, seguem fortes em importância histórica e em memória afetiva. As novas versões teriam, portanto, que justificar a palavra “futuro” do título – ou, se ninguém quer adivinhar o som do amanhã, pelo menos pode fincar os pés no som que é feito hoje, o futuro de quem chegou vivo em 2022, apesar dos tropeços do caminho. O Futuro Pertence à… Jovem Guarda é, portanto, um disco de rock contemporâneo e para um público contemporâneo, não importa que idade ele tenha. Foi para chegarmos a esse resultado estético com o máximo de prazer e o mínimo de dor, que eu sugeri chamarmos outra vez Pupillo para assumir a produção musical. Erasmo concordou e ele veio”, prosseguiu Marcus Preto.

A banda que entrou em estúdio já estava quase toda definida. É a mesma que acompanha Erasmo na estrada há tantos anos, formada por Zé Lourenço (pianos e teclados), Rike Frainer (bateria) e os irmãos Luiz Lopes (violões e guitarras) e Pedro Dias (baixo) – os Filhos da Judith, que também abriram vocais em todas as faixas. Como Billy Brandão, guitarrista oficial da banda de Erasmo, estava morando fora do Brasil, Pedro Baby foi convidado para as gravações. Confira outros lançamentos conosco.

O Futuro Pertence à… Jovem Guarda e a visão inusitada de Erasmo

Com seu humor peculiar, Erasmo Carlos conta que a ideia de cantar esse repertório surgiu a partir das anedóticas abordagens que recebe de fãs da Jovem Guarda desde que o programa de TV existia. Como a memória edita os fatos vividos ao seu próprio gosto e sem qualquer comprometimento com a realidade, sempre surgem conversas do tipo: “Erasmo, eu adorava ver você cantando aquela sua música, ‘ele é o bom, é o bom, é o bom’”. No início, o cantor até gastava um tempinho explicando: “Não, essa música não é minha, essa é do Eduardo Araújo”. Mas, com o passar dos anos, achou mais confortável para ambas as partes apenas concordar: “Essa é muito boa, é uma das que eu mais gosto de cantar”.

É claro que “O Bom” teria de estar entre as canções selecionadas para O Futuro Pertence à… Jovem Guarda. Lançada originalmente por Eduardo Araújo em compacto de 1966, a faixa batizou o álbum de estreia do cantor mineiro no ano seguinte. Teve ali sua autoria creditada exclusivamente a Carlos Imperial (1935 – 1992), embora o próprio Eduardo Araújo seja parceiro na composição, conforme afirma o biógrafo Denilson Monteiro no livro “Dez, Nota Dez! Eu Sou Carlos Imperial” (editora Planeta). Ao instrumental feito pela banda base, Pupillo acrescentou percussão e André Lima, sintetizadores.

Com letra em português escrita pelo jovem Erasmo Carlos em 1964, “Nasci para Chorar” é a versão brasileira de “(I Was) Born to Cry”, rock lançado dois anos antes pelo autor, o cantor e compositor americano Dion DiMucci. Foi Roberto Carlos quem fez o primeiro registro e ele se tornou uma das ótimas faixas de seu terceiro LP, “É Proibido Fumar” (1964). Mas várias regravações surgiriam nos anos seguintes, em interpretações de artistas como Fagner, Cássia Eller (1962 – 2001) e Adriana Calcanhotto. A versão de Erasmo conta com um envenenado arranjo de sopros do maestro Tiquinho.

Roqueira desde a essência, “Nasci para Chorar” foi criada antes da estreia do programa da TV Record. Abre o álbum O Futuro Pertence à… Jovem Guarda ostentando o prestígio de ser precursora de muito do que seria realizado nos anos seguintes sob os conceitos estéticos daquela turma. Na outra ponta, pode-se dizer o mesmo sobre a cinematográfica “Ritmo da Chuva”, lançada em nossa língua em 1964 pelo cantor carioca Demétrius (1942 – 2019). Balada de John Claude Gummoe lançada em 1962 pelo grupo americano The Cascades, “Rhythm of the Rain” tinha chegado ao primeiro lugar das paradas americanas em 1963. Demétrius escreveu os versos em português e “Ritmo da Chuva” batizou seu quarto LP, em 1964. Sucesso nacional instantâneo, é famosa até hoje. Para manter o mesmo clima de sessão da tarde na nova versão, Carlos Trilha criou uma chuva de sintetizadores, incrementada pelo arranjo de cordas de Felipe Pacheco Ventura.

As releituras de canções estrangeiras

Gravar versões em português para sucessos internacionais, vale lembrar, era um hábito muito frequente na música popular brasileira desde o surgimento da nossa indústria fonográfica que permeava todos os gêneros. Não seria diferente nos anos 1960, com o nosso engatinhante rock‘n’roll. Esse repertório não apenas influenciou decisivamente na maneira de compor dos jovens artistas brasileiros como estruturou muito da memória afetiva dos ouvintes daquele período. Também por isso, as versões são tratadas com tanto carinho no novo álbum de Erasmo Carlos. São três. Além de “Nasci para Chorar” e “Ritmo da Chuva”, O Futuro Pertence à… Jovem Guarda traz a versão brasileira para “Forget Him”, canção de Mark Anthony que explodiu em 1963 na voz de Bobby Rydell e, três anos depois, ganhou letra em português por Roberto Corte Real. Rebatizada de “Esqueça”, foi hit do sexto LP de Roberto Carlos, em 1966. E voltaria a ganhar repercussão nas décadas seguintes a partir de regravações feitas por nomes como Fábio Jr. e Marisa Monte.

Mais do que desbravar lados B, o novo álbum de Erasmo Carlos traz aos ouvidos de 2022 os sucessos reais daquele período efervescente da história da música.  “Devolva-me” foi o maior hit da dupla Leno & Lilian e foi lançada no primeiro LP da dupla, em 1966. Escrita pela própria Lilian Knapp em parceria com Renato Barros, líder do grupo Renato e seus Blue Caps, a balada voltou à tona com força imensa em 2000, quando Adriana Calcanhotto a incluiu no roteiro do show “Público”, posteriormente editado em CD. Erasmo se lembra até hoje das inúmeras vezes em que Leno & Lilian defenderam “Devolva-me” no “Jovem Guarda” e tem carinho especial por essa canção. Sua gravação conta com os sintetizadores de Carlos Trilha e um delicado arranjo de cordas de Felipe Pacheco Ventura.

Os grupos vocais, escola tão prezada por Erasmo desde o começo de sua carreira na música, estão representados no repertório de O Futuro Pertence à… Jovem Guarda por “Alguém na Multidão”, grande sucesso dos Golden Boys. A canção foi escrita pelo compositor e versionista Rossini Pinto, também um dos principais produtores da Jovem Guarda, e lançada pelo quarteto em 1965. Se a gravação original aposta na explosão, a interpretação de Erasmo caminha por ambiente intimista, ressaltando o romantismo da letra. O novo arranjo tem apenas a voz de Erasmo, os violões de Luiz Lopes e Pedro Baby, o piano de José Lourenço e os violinos e violas de Felipe Pacheco Ventura.

“O Tijolinho” espelha as canções de inocência poética que foram tão importantes para que a Jovem Guarda atingisse o mainstream brasileiro nos anos 1960. Música de Wagner Benatti, foi lançada no primeiro compacto de Bobby de Carlo, em 1966, com estrondoso sucesso, seduzindo netos, filhos, pais e avós com sua capacidade pop. Para a versão de Erasmo, todo o instrumental foi concebido levando em conta essa característica e cuidando para que não se perdesse justamente a ingenuidade amorosa natural do texto.

Única canção escrita pelos parceiros Roberto e Erasmo Carlos presente em O Futuro Pertence à… Jovem Guarda, “A Volta” abriu o LP de estreia da dupla Os Vips, em 1966. E se tornou o maior hit da carreira do duo paulista formado pelos irmãos Ronaldo Antonucci e Márcio Antonucci (1945 – 2014). Embora Roberto Carlos já tenha dado sua interpretação para “A Volta” em 2004, para a trilha da novela “América”, a canção seguia inédita na voz do outro autor até o ano passado. A versão de Erasmo Carlos foi lançada nas plataformas de música em dezembro como o primeiro single deste novo álbum e também conta com Pupillo na percussão e André Lima nos sintetizadores.

Trazida por um de seus criadores centrais, a Jovem Guarda chega ao futuro a que sempre pertenceu. Esteticamente renovada, mas sem abrir mão de nenhuma fagulha da memória afetiva que construiu em 56, quase 57 anos de história. Como se aquele domingo, em agosto de 1965, tivesse acontecido um dia desses.

Então, para ouvir, faixa a faixa, do álbum “O Futuro Pertence à… Jovem Guarda”, do Tremendão Erasmo Carlos, acesse sua plataforma de áudio predileta.

Marcos Aurélio

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *